engasgo

Lambi
3 min readMay 18, 2021

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ninguém me disse com a boca
mas sempre sinto que se — enquanto — eu não hormonizar
ou não seguir um padrão pra ser fora do padrão
vou ser menos válida e não vão me levar a sério
e que eu não sou “tão trans’’ quanto outras trans.
sinto isso até por pessoas do próprio meio
talvez mais

as pessoas esquecem do processo individual de cada ser e que nem todo mundo pode hormonizar ou fazer cirurgia e outros procedimentos por algum motivo, inclusive o financeiro, e muita gente nem quer.
todo mundo tem seu tempo e não é uma corrida
não há nem mesmo um único caminho
nem acho que exista uma linha de chegada, mesmo pra pessoa mais passável do mundo, mas isso eu não posso falar com propriedade.
acho que existe sim a agonia, as disforias e a pessoa se sentir bem com o que se é, alcançar essa paisagem, o que é diferente pra cada pessoa
e existe o respeito que devia ser pra todo mundo
já vi mulheres trans e transfemininas falarem em massa numa publicação pra homens trans e transmasculinos sobre banheiro, propagando até o ódio e reduzindo a uma resposta simples uma questão que não vivem, não dessa forma, como se cada uma fosse dona de toda verdade do mundo, mesmo que elas divergissem entre si.
aquele post em específico não era pra elas como não era pra mim. não sou homem trans ou transmasculino, sou transfeminina e isso causa diferentes impactos na vivência, mesmo que compartilhemos várias outras vivências por sermos trans, e por trans quero dizer todo mundo que não se identifica com o gênero designado no nascimento — “Do latim trans (além, através)’’ — .
se você não se identifica com o que te designaram e se denomina de outra forma, acha que esse termo não te representa, tudo bem. eu não to aqui pra te desvalidar e acho que a sua visão e vivencia tem tanto valor quanto a minha. só não acho mais que a minha tenha menos valor que outras, lembrando sempre que eu não sou ninguém pra dizer quem é quem o que é o quê, como tenho visto muita gente por aí.
bom, sobre a publicação, depois rolou um debate e quase todo mundo se entendeu, ou pelo menos quem se pronunciou.
a parada que eu acho é: sobre a vivência da outra pessoa, a experiência, sobre uma opressão que você não sofre, você não pode falar. é importante todo mundo saber o seu lugar no mundo.
entendo também que uma comunidade tão atacada seja normalmente armada, agressiva, reativa. só fico triste.
já vi muitos relatos parecidos e já fui atacada por trans que nem me conheciam — sem sequer ter falado com elas antes —, e com o mesmo afinco de grupos de ódio que também me atacaram, só que nesse primeiro caso doeu mais porque eu não esperava e nem soube o que fazer. achava que precisava da aprovação.
costumo dizer que não tem lugar seguro, nem mesmo dentro da própria comunidade, e isso é algo que já conversei com outras pessoas trans que compartilham o mesmo sentimento.

a vontade é de não falar com mais ninguém
cada vez mais me sinto sozinha.

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Lambi

escritora transfeminina de macaé/RJ — escrevo como uma gata — lambendo as próprias feridas — com a língua áspera